Aqui na AR, uso o crochê como ferramenta de conexão em minhas práticas terapêuticas.

Durante muito tempo fiz parte desse universo — e ainda faço, mas de outro lugar e com um novo olhar — Hoje trago esse repertório alinhado ao propósito de Terapia integrativa e educação afetiva que orienta nosso trabalho. O crochê revela como técnicas manuais podem unir mente, corpo e emoções, oferecendo um caminho de autodescoberta, fortalecimento de vínculos e bem-estar. É a partir dessa perspectiva que compartilho minha jornada nas “manualidades”… e o desejo de que possamos aprender juntas!

Crochê sempre foi, para mim, mais do que uma técnica. Mais do que fios e agulhas, era uma conexão com o meu interior, um respiro, uma maneira de encontrar força nas mãos. Quando me reconectei com o crochê, após uma fase difícil de depressão, não era apenas uma prática manual — era um caminho terapêutico, uma forma de cura. Porém, ao me aprofundar no universo do crochê nas redes sociais, percebi que o que antes era um espaço de troca, acolhimento e pertencimento, se transformava, aos poucos, em um campo de disputa, de ego inflamado e brigas sobre autoria e relevância.

Onde a roda de cura virou ringue de ego?

A relação com o crochê, que um dia foi suave e repleta de afeto, passou a ser marcada por disputas. O que começou como uma forma de pertencimento, de se juntar a outras mulheres, de dividir ensinamentos e criações, se transformou em um campo de batalha onde a disputa por “direitos autorais” e “originalidade” tomou conta.

Fui puxada para essa “trincheira” pela minha amiga Eloisa, criadora da Varal das Artes , que sempre defendeu as linhas e agulhas com unhas e dentes. Foi ela quem provocou essa reflexão. Ela, bem mais do que eu, seguiu firme em sua luta contra as tentativas de dominação de grupos que se intitulavam “referências”, – “os alecrins dourados” – que achavam que podiam ditar regras sobre o que era ou não “autêntico” no universo do crochê. Don’Elo nunca aceitou essa imposição pra ela (e para mim) o crochê não deve ser uma propriedade de poucos, mas sim um território compartilhado, onde todas poderiam ser livres para aprender, fazer, criar… e vender, se quiserem.

Eu tô aqui. Vim para essa trincheira sem saber muito bem como minha presença teria utilidade, ou como minhas reflexões seriam recebidas num campo tão inflamado — mas como nunca tive medo do bom combate, eu me joguei. Não sou de me mixar. Meu coração está aberto, meu desejo é de compreender, de somar, de costurar pontos e não cortar laços. Mas a guerra, como disse, cansa — e cansa principalmente quem nasceu para o diálogo, não para o duelo

Quando o crochê vira uma batalha de egos?

O tal “direito autoral” no crochê, especialmente entre as criadoras de amigurumi, virou um campo de constante atrito. Foi então que percebi que o crochê,  que deveria ser um abraço coletivo, estava se tornando um ringue de egos.  Muitas querem provar que seus trabalhos são “originais”, “únicos”, e assim, reivindicam um “direito autoral inexistente”, ou até recentemente, o “patenteamento” de técnicas e personagens. Mas a grande questão é que o crochê é uma técnica milenar. Nada se cria. Tudo já foi feito. E isso não diminui a beleza de uma criação, mas reforça a ideia de que estamos todas conectadas por algo maior.

Estudei sobre o direito autoral, busquei argumentos para defender o que acreditava ser a verdadeira essência do crochê: uma prática coletiva, que deve ser acessível a todos, sem a imposição de um “poder superior” sobre as demais. Eu, Eloisa e outras mulheres tentamos abrir um diálogo sobre os limites do direito autoral, mas a resposta foi mais agressiva do que pensávamos. O que deveria ser um debate de ideias, se transformou em um jogo de acusações sem fatos e agressões midiáticas.

A pressão da “relevância” e a busca pelo pertencimento

Neste universo, a busca por relevância acabou tomando o lugar do verdadeiro pertencimento. Muitas mulheres, na tentativa de se destacarem, se perdem na ilusão de que a “relevância” virá através das “tretas” – Aliás, nada contra as tretas, ainda mais se servem para identificar estes pontos cegos – e da disputa por reconhecimento. Só que se esquecem que o que realmente importa é a autenticidade, a honestidade com a própria história e com os outros. E, ao mesmo tempo, se cegam para o fato de que a própria técnica do crochê já é, por si só, uma forma de pertencimento.

O crochê, antes uma prática de cura, agora, me parece que virou um jogo de poder, onde o que importa não é mais o ato de criar, mas sim a validação externa. E, foi quando me dei conta disso, percebi que o que mais me machucou não foi o crochê em si, mas o que as pessoas fizeram dele. Não são as agulhas que machucam, mas o ego, a competição, o medo de não sermos “boa o suficiente”, de não sermos aceita.

O paradoxo do pertencimento

Em muitos desses espaços, o que está em jogo vai além da técnica ou da estética. É a busca humana por pertencimento — e, às vezes, quando finalmente se sente parte de algo, a pessoa se agarra com força àquele lugar. O problema é que, nesse movimento, pode surgir uma inversão perigosa: quem antes se sentia oprimida passa a exercer opressão. É quando o desejo de ser reconhecida se confunde com a necessidade de dominar. No meio do crochê, isso aparece nas pequenas exclusões, nas piadas veladas, nas regras implícitas sobre o que é “moderno” ou “aceitável”, como discriminar a crocheteira que faz “tapetinho de banheiro ou a que produz “biquinho do pano de prato”… A opressão acontece quando o fazer livre e criativo se transforma em um clube fechado, onde só entra quem pensa igual. E aí, sem perceber, as rodas viram ringues — e a arte, que deveria propiciar a curar, começa a ferir.

A leveza nem sempre vem da ausência de peso

Hoje, volto ao crochê com uma nova perspectiva. Volto com a consciência de que, às vezes, a vida nos pede peso. Pede profundidade. Nem sempre seremos leves, e tudo bem. E o crochê, como tudo na vida, precisa ser vivido com a coragem de encarar suas sombras. Não posso mais aceitar que ele seja usado como um meio de dominação ou para alimentar egos. Preciso que ele seja um refúgio, uma prática de cura, de leveza, mas também de honestidade. Por isso que estou nessa trincheira!

A leveza não vem da ausência de peso, mas da capacidade de lidar com ele com respeito e verdade. O crochê, para mim, nunca foi sobre ser relevante ou superior a outra pessoa. Foi sempre sobre conexão. E talvez, se mais mulheres tivessem a coragem de olhar para dentro de si, ao invés de olhar para o que está acontecendo “lá fora”, os nichos, as bolhas do crochê não teriam se transformado em ringue

E se a gente “afrouxasse” um pouco a linha?

Vamos ser leves, mas sem perder a profundidade. Vamos ser honestas, mesmo quando a honestidade for dura. E, acima de tudo, vamos ser empáticas, porque no fim das contas, é isso o que todos nós precisamos. A leveza não vem da ausência de peso, mas da capacidade de lidar com ele com respeito e, acima de tudo, com verdade.

Foto de Anete Lusina:

Porque, verdade seja dita, esse tema ainda tem muita linha para desenrolar.
Se você também já se viu no meio de uma roda que virou ringue — ou se sente que seu crochê carrega histórias que vão além dos pontos — deixa um comentário, compartilha suas vivências. Vamos continuar esse fio de conversa com profundidade, afeto e honestidade. Porque, no fim, a gente não precisa pensar igual — só precisa ter coragem de tecer junto.


14 respostas para “De roda de cura a ring de ego: onde foi que o crochê se perdeu?”

  1. Avatar de Eloisa Martins
    Eloisa Martins

    Esse texto pra mim é referência!
    Espero que chegue no momento certo para aquelas que se sentem diminuídas por pensarem diferente.
    O resgate da manualidade precisa acontecer, caso contrário eu vejo um futuro sombrio, onde uma parte relativamente pequena de pessoas, se coloca em um patamar inacessível e inatingível, além de abusar psicologicamente daquelas que só querem crochetar para distrair ou até colaborar com uma renda para o sustento da família.
    Chega de ameaças para poder se sobressair!
    Muito obrigada pela reflexão e tenho uma orgulho ímpar por poder dizer que sou sua amiga.
    ☺️

  2. Avatar de Erica Silva dos Santos
    Erica Silva dos Santos

    O crochê para mim que sempre foi afetivo, aquele que conta uma história através das peças tecidas, no meu ponto de vista está ficando a cada dia mais distante….ele tem sido minimizado a receitas pagas, grupos que produzem para fazer propaganda gratuitas em troca de fios (de marcas que também dominam o mercado) e de um estatus para quem sabe um dia, conseguir fazer parte do grupo de artesãos professores sei lá de onde….Aquela troca que se dava nas casas, nas igrejas em torno dos cafés e das amostrinhas já quase não acontecem e a história assim como as pessoas vão se perdendo e ai de quem se posicionar o CANCELAMENTO taí, basta dar sua opinião….Então agora prefiro crochetar minhas histórias quietinha no meu canto, sem alarde e trocando com aqueles que assim como eu, buscam as histórias e não as disputas💕🧶

  3. Avatar de Ana Paula Neves
    Ana Paula Neves

    Eu busquei o reconhecimento no mundo do crochê e nunca obtive. Não por fazer de qualquer jeito, mas pq eu não tinha uma boa câmera, iluminação, sites, vendas de receitas e tudo o que a turma do “vou te processar pq é minha receita” faz, mas pq eu faço pra vender. A ponta de cá desse rolo não tem glamour, mas tem afeto, respeito e carinho. Meu tapete de croche é muito bonito, mas vai ficar no chão da casa de alguém que talvez nem volte pra comprar de novo. Senso de realidade e senso crítico pertencem aos poucos que estão aptos à leitura, à dinâmica de rotina com suas variações. Ninguém deveria pensar em processar os outros pq fez um amigurumi, mas já que está disposto, que receba o que a jurisprudência diz: “não é obra de arte, não tem direitos autorais e mesmo com registro, não se aplica pq se trata de um manual e nenhum manual é passível de direito autoral”

  4. Avatar de Janaina marroco de souza
    Janaina marroco de souza

    Fiquei profundamente tocada por esse texto. Como crocheteira, me identifiquei com cada palavra e com a sensibilidade com que a autora expôs uma realidade que muitas de nós temos vivenciado. É triste ver como um espaço que antes era de cura, acolhimento e troca vem se tornando palco de disputas e vaidades. Parabéns à autora e a todas as pessoas envolvidas nessa reflexão tão necessária — que possamos retomar a essência do crochê como arte coletiva, afetuosa e transformadora.

  5. Avatar de Patrícia Merhet
    Patrícia Merhet

    Perfeita a reflexão!!!
    Tomara que as pessoas estejam bem abertas de mente e coração, e que as agulhas possam trabalhar em paz

  6. Avatar de Iara Cristina Andrade Noel

    Márcia acho que estamos conectadas❤️bom esta se aproximando a Mega Artesanal e amo desde que descobri em 2019 e vou esse ano mas já estou trabalhando a minha mente sabe🌹 porque quero ir com as minhas peças sabe e não vou fazer parte de um grupo para peça crochetada para esse evento sabe você entendeu, as vezes queremos nos pertences ao um grupo e no fundo estamos sozinhos sabe obrigada por compartilhar lê e me identifiquei vou te escrever detalhes lá no seu Instagram 😘

  7. Avatar de Terezinha Freitas
    Terezinha Freitas

    É uma grande disputa de egos, os alecrins mais dourados se apropriaram de uma técnica milenar e passaram a se sentir muito superiores, muito cheios de criatividade e muito mais capazes e agora querem monopolizar o crochê, como se fossem donos.
    O crochê não tem dono, é para quem quer aprender, quem quer ensinar, quem quer fazer o tapete, o pano de prato, a roupa, a bichinho, a boneca, etc
    O crochê é de todos nós e para todos nós.

  8. Avatar de Julianna
    Julianna

    Simplesmente sensacional, disse tudo!!!

  9. Avatar de Rose Andrade
    Rose Andrade

    Amei seu texto.
    E com ele vim a descobrir o que me fez a enfadar das laçadas,das linhas e das agulhas e do prazer que tanto já tive e um dia me curou,para o momento são essas minhas palavras.
    Vejo com tristeza que não existe mais trocas se não tiver trocados !

  10. Avatar de Andreia Miano
    Andreia Miano

    Eu afrouxei totalmente a linha, perdi o encanto que o crochê representava na minha vida…não me reconheço nesse mundo, que passou como quase tudo, a depender de likes e por mérito ou não, aprendeu crochê por modinha da vez e hoje é designer de amigurumi por exemplo 😕

  11. Avatar de Cristina Rocha
    Cristina Rocha

    Perfeito seu texto Márcia. Um dia me senti assim também, oprimida. Mas agora faço crochê porque gosto e faço as peças que gosto, sem a necessidade de pertencer ao clube das “alecrim douradas”. É libertador.
    Gratidão a você e a don’Elô. ❤❤❤❤

  12. Avatar de Débora Cristina Costa
    Débora Cristina Costa

    Durante a busca por essa técnica de amigurumi, me senti acoada e querendo ser pertencente a um grupo, que depois percebi que era algo extremamente fechado, seletivo e coercitivo. Mas essa percepção não veio sozinha, pois estava passando por um momento frágil, então abri a mente e escutei os dois lados. Hoje graças a você, Márcia, e a DonElo, que me libertei das amarras e entendi o que está por trás desse universo.

  13. Avatar de Selena

    Sou de Portugal, para mim o crochê também é uma terapia e um escape do meu trabalho diário.
    Faço crochê por gosto, não para ser melhor que qualquer outro ou outra.

  14. Avatar de yeda cristina meireles
    yeda cristina meireles

    Texto verdadeiro e forte 💪. Escrito com muita inteligência e sabedoria. Por mais mulheres inteligentes que somam , não subtraem. Se ajudam e se apoiam.
    Minha mãe que teve uma infância humilde, aprendeu trico com 2 varetinhas de madeira, fazia verdadeiras obras de arte. Toalhas, colchas e roupas. Isso, nos anos 40. Ninguém é dono ou criador, inventor de nada nesse universo.

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