Qual é o verdadeiro problema?
Essa pergunta me cutucou de um jeito que não consegui mais ignorar. Comecei a investigar esse incômodo, não apenas em mim, mas na história da educação e na trajetória coletiva das mulheres que educam. Outro dia, vi uma professora corrigindo uma criança que a chamou de “tia”. Disse com firmeza: “Tia, não, sou professora”. Não foi a primeira vez que presenciei esse tipo de correção. Eu mesma, dias atrás, me peguei dizendo em sala: “Espera que a tia já vai te ajudar…” — e me corrigi logo em seguida, como se tivesse cometido um erro grave.
Fiquei com isso na cabeça: o que há de tão errado em ser chamada de tia?
Seria o pronome ou o contexto da trajetória coletiva das mulheres que educam?

Na Educação Infantil, especialmente em territórios populares, ser chamada de “tia” sempre foi uma expressão de afeto, cuidado e confiança. Longe de indicar parentesco biológico, o termo revela uma cultura do vínculo, onde educadores e educadoras assumem um lugar simbólico de referência, como figuras de proteção e orientação. “Tia” não é apenas uma forma coloquial — é um pronome afetivo que carrega a força do pertencimento.
Essa lógica do afeto não é novidade. Nas tradições afro-brasileiras, por exemplo, é comum que líderes espirituais e comunitários sejam chamados de “Mãe” (Ialorixá), “Pai” (Babalorixá), ou simplesmente “Iá”, como forma de expressar não um vínculo de sangue, mas um reconhecimento de autoridade amorosa, cuidado e sabedoria ancestral. Esses termos apontam para uma pedagogia que é anterior à institucionalização da escola: uma pedagogia do terreiro, da comunidade, da roda de histórias.
Portanto, quando uma criança chama sua educadora de “tia”, ela está, muitas vezes, dizendo: “você é alguém em quem eu confio, alguém que me cuida”. O que está em jogo não é uma deturpação da profissionalidade, mas sim uma linguagem espontânea do afeto.
Aí entendi: o problema nunca foi o afeto, mas o que a sociedade escolhe desvalorizar.
Com a promulgação da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), em 1996, a Educação Infantil passou a ser reconhecida como etapa formal da educação básica. Esse avanço exigiu a profissionalização da função docente nas creches e pré-escolas, antes majoritariamente ocupada por mulheres com pouca ou nenhuma formação específica. A troca do “tia” pelo “professora” foi, então, um gesto político — uma tentativa de tirar a docência da sombra do cuidado e colocá-la no campo do saber técnico.
Mas será que foi preciso deixar o afeto para trás?
Paulo Freire, em Pedagogia da Autonomia, ensina que:
“Ensinar exige alegria e esperança. Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação.”
E mais: “Ensinar exige afetividade.”
Para Freire, o saber técnico e o vínculo amoroso não se opõem — se complementam.
Nilma Lino Gomes, pedagoga e ex-ministra, também nos convida a considerar o lugar do afeto na construção do saber, sobretudo entre populações negras, onde a oralidade e os laços de cuidado são centrais:
“A escola precisa compreender e respeitar os modos de ser e viver dos sujeitos que a compõem.”
Então, talvez o problema não seja a palavra “tia”, mas o quanto ainda associamos o afeto à informalidade e, por isso, ao não saber. O quanto ainda acreditamos que, para sermos reconhecidas como profissionais, precisamos nos afastar da linguagem que nos aproxima dos nossos.
É claro que há contextos em que é importante reforçar a identidade profissional da docente. Principalmente quando somos subestimadas, invisibilizadas, sobrecarregadas. Mas será que o nome que nos chamam define o valor que temos? Ou seria o contrário — o modo como ensinamos que transforma qualquer nome num chamado de amor?
Por tudo isso, hoje eu escolho não me ofender se me chamam de tia.
Não deixo de ser educadora porque sou chamada com afeto.
Apenas me certifico de que, ao lado do carinho, haja também o reconhecimento da minha formação, da minha entrega e do meu lugar de direito.
Porque, no fim das contas, a verdadeira pergunta não é se somos chamadas de tia ou professora — mas sim: que tipo de vínculo estamos dispostas a construir com quem aprende conosco?
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